terça-feira, 7 de agosto de 2007

[TEXTO] A invenção da crise

A invenção da crise
Marilena Chauí
Era o fim da tarde. Estava num hotel-fazenda com meus netos e resolvemos ver jogos do PAN-2007. Liguei a televisão e "caí" num canal queexibia um incêndio de imensas proporções enquanto a voz de um locutor dizia:"o governo matou 200 pessoas!". Fiquei estarrecida e minha primeira reaçãofoi típica de sul-americana dos anos 1960: "Meu Deus! É como o La Moneda eAllende! Lula deve estar cercado no Palácio do Planalto, há um golpe deEstado e já houve 200 mortes! Que vamos fazer?". Mas enquanto meu pensamentotomava essa direção, a imagem na tela mudou. Apareceu um locutor quebradava: "Mais um crime do apagão aéreo! O avião da TAM não tinha condiçõespara pousar em Congonhas porque a pista não está pronta e porque não háespaço para manobra! Mais um crime do governo!". Só então compreendi que setratava de um acidente aéreo e que o locutor responsabilizava o governo peloacontecimento.
Fiquei ainda mais perplexa: como o locutor sabia qual a causa doacidente, se esta só é conhecida depois da abertura da caixa preta do avião?Enquanto me fazia esta pergunta e angustiada desejava saber o que haviaocorrido, pensando no desespero dos passageiros e de suas famílias, olocutor, por algum motivo, mudou a locução: surgiram expressões como "pareceque", "pode ser que", "quando se souber o que aconteceu". E eu me disse: masse é assim, como ele pôde dizer, há alguns segundos, que o governo cometeu ocrime de assassinar 200 pessoas?
Mudei de canal. E a situação se repetia em todos os canais: primeiro,a afirmação peremptória de que se tratava de mais um episódio da crise doapagão aéreo; a seguir, que se tratava de mais uma calamidade produzida pelogoverno Lula; em seguida, que não se sabia se a causa do acidente havia sidoa pista molhada ou uma falha do avião. Pessoas eram entrevistadas para dizer(of course) o que sentiam. Autoridades de todo tipo eram trazidas à telapara explicar porque Lula era responsável pelo acidente. ETC.
Mas de todo o aparato espetacular de exploração da tragédia e deabsoluto silêncio sobre a empresa aérea, que conta em seu passivo com maisde 10 acidentes entre 1996 e 2007 (incluindo o que matou o próprio dono daempresa!), o que me deixou paralisada foi o instante inicial do "noticiário", quando vi a primeira imagem e ouvi a primeira fala, isto é, apresença da guerra civil e do golpe de Estado. A desaparição da imagem doincêndio e a mudança das falas nos dias seguintes não alteraram minhaprimeira impressão: a grande mídia foi montando, primeiro, um cenário deguerra e, depois, de golpe de Estado. E, em certos casos, a atitude chega aoridículo, estabelecendo relações entre o acidente da TAM, o governo Lula,Marx, Lênin e Stálin, mais o Muro de Berlim!!!
1) Que papel desempenhou a mídia brasileira - especialmente a televisão - na"crise aérea" ?
Meu relato já lhe dá uma idéia do que penso. O que mais impressiona é avelocidade com que a mídia determinou as causas do acidente, apontouresponsáveis e definiu soluções urgentes e drásticas!
Mas acho que vale a pena lembrar o essencial: desde o governo FHC, há oprojeto de privatizar a INFRAERO e o acidente da GOL, mais a atitudecompreensível de auto-proteção assumida pelos controladores aéreos foi oestopim para iniciar uma campanha focalizando a incompetência governamental,de maneira a transformar numa verdade de fato e de direito a necessidade daprivatização. É disso que se trata no plano dos interesses econômicos.
No plano político, a invenção da crise aérea simplesmente é mais umepisódio do fato da mídia e certos setores oposicionistas não admitirem alegitimidade da reeleição de Lula, vista como ofensa pessoal à competênciatécnica e política da auto-denominada elite brasileira. É bom a gente nãoesquecer de uma afirmação paradigmática da mídia e desses setoresoposicionistas no dia seguinte às eleições: "o povo votou contra a opiniãopública". Eu acho essa afirmação o mais perfeito auto-retrato da mídiabrasileira!
Do ponto de vista da operação midiática propriamente dita, éinteressante observar que a mídia:
a) não dá às greves dos funcionários do INSS a mesma relevância que recebemas ações dos controladores aéreos, embora os efeitos sobre as vidas humanassejam muito mais graves no primeiro caso do que no segundo. Mas pobretrabalhador nasceu para sofrer e morrer, não é? Já a classe média e aelite... bem, é diferente, não? A dedicação quase religiosa da mídia com osatrasos de aviões chega a ser comovente...
b) noticiou o acidente da TAM dando explicações como se fossem favascontadas sobre as causas do acontecimento antes que qualquer informaçãosegura pudesse ser transmitida à população. Primeiro, atribuiu o acidente àpista de Congonhas e à Infraero; depois aos excessos da malha aérea,responsabilizando a ANAC; em seguida, depois de haver deixado bem marcada aresponsabilidade do governo, levantou suspeitas sobre o piloto (novato,desconhecia o AIRBUS, errou na velocidade de pouso, etc.); passou como gatosobre brasas acerca da responsabilidade da TAM; fez afirmações sobre aextensão da pista principal de Congonhas como insuficiente, deixando delado, por exemplo, que a de Santos Dumont e Pampulha são menos extensas;
c) estabeleceu ligações entre o acidente da GOL e o da TAM e de ambos com aposição dos controladores aéreos, da ANAC e da INFRAERO, levando a populaçãoa identificar fatos diferentes e sem ligação entre si, criando o sentimentode pânico, insegurança, cólera e indignação contra o governo Lula. Essessentimentos foram aumentados com a foto de Marco Aurélio Garcia e arepetição descontextualizada de frases de Guido Mântega, Marta Suplicy eLula;
d) definiu uma cronologia para a crise aérea dando-lhe um começo no acidenteda GOL, quando se sabe que há mais de 15 anos o setor aéreo vem tendoproblemas variados; em suma, produziu uma cronologia que faz coincidir osproblemas do setor e o governo Lula;
e) vem deixando em silêncio a péssima atuação da TAM, que conta em seupassivo com mais de 10 acidentes, desde 1996, três deles ocorridos emCongonhas e um deles em Paris - e não dá para dizer que as condições áreasda França são inadequadas! A supervisão dos aparelhos é feita em menos de 15minutos; defeitos são considerados sem gravidade e a decolagem autorizada,resultando em retornos quase imediatos ao ponto de partida; os pilotos voammais tempo do que o recomendado; a rotatividade da mão de obra é intensa; acarga excede o peso permitido (consta que o AIRBUS acidentado estava comexcesso de combustível por haver enchido os tanques acima do recomendadoporque o combustível é mais barato em Porto Alegre!); etc.
f) não dá (e sobretudo não deu nos primeiros dias) nenhuma atenção ao fatode que Congonhas, entre 1986 e 1994, só fazia ponte-aérea e, sem mais essanem aquela, desde 1995 passou a fazer até operações internacionais. Por queserá? Que aconteceu a partir de 1995?g) não dá (e sobretudo não deu nos primeiros dias) nenhuma atenção ao fatode que, desde os anos 1980, a exploração imobiliária (ou o eterno poder dasconstrutoras) verticalizou gigantesca e criminosamente Moema, Indianópolis,Campo Belo e Jabaquara. Quando Erundina foi prefeita, lembro-me da grandequantidade de edifícios projetados para esses bairros e cuja construção foiproibida ou embargada, mas que subiram aos céus sem problema a partir de1993. Por que? Qual a responsabilidade da Prefeitura e da Câmara Municipal?
2) Como a sra. avalia a reação do Governo Lula à atuação da mídia nesseepisódio ?
Fraca e decepcionante, como no caso do mensalão. Demorou para semanifestar. Quando o fez, se colocou na defensiva.
O que teria sido politicamente eficaz e adequado?
Já na primeira hora, entrar em rede nacional de rádio e televisão eexpor à população o ocorrido, as providências tomadas e a necessidade deaguardar informações seguras.
Todos os dias, no chamado "horário nobre", entrar em rede nacional derádio e televisão, expondo as ações do dia não só no tocante ao acidente,mas também com relação às questões aéreas nacionais, além de apresentarnovos fatos e novas informações, desmentindo informações incorretas ealertando a população sobre isso.Mobilizar os parlamentares e o PT para uma ação nacional de informação,esclarecimento e refutação imediata de notícias incorretas.
3) Em "Leituras da Crise", a sra. discute a tentativa do impeachment doPresidente na chamada "crise do mensalão". Há sra. vê sinais de uma novatentativa de impeachment ?
Sim. Como eu disse acima, a mídia e setores da oposição política aindaestão inconformados com a reeleição de Lula e farão durante o segundomandato o que fizeram durante o primeiro, isto é, a tentativa contínua de umgolpe de Estado. Tentaram desestabilizar o governo usando como arma as açõesda Polícia Federal e do Ministério Público e, depois, com o caso Renan(aliás, o governador Requião foi o único que teve a presença de espírito ea coragem política para indagar porque não houve uma CPI contra o presidenteFHC, cuja história privada, durante a presidência, se assemelhou muito à deRenan Calheiros). Como nenhuma das duas tentativas funcionou, esperou-se quea "crise aérea" fizesse o serviço. Como isso não vai acontecer, vamos verqual vai ser a próxima tentativa, pois isso vai ser assim durante quatroanos.
4) No fim de "Simulacro e Poder" a sra. diz: "... essa ideologia opera com afigura do especialista. Os meios de comunicação não só se alimentam dessafigura, mas não cessam de instituí-la como sujeito da comunicação...Ideologicamente ... o poder da comunicação de massa não é igual ousemelhante ao da antiga ideologia burguesa, que realizava uma inculcação devalores e idéias. Dizendo-nos o que devemos pensar, sentir, falar e fazer,(a comunicação de massa) afirma que nada sabemos e seu poder se realiza comointimidação social e cultural... O que torna possível essa intimidação e aeficácia da operação dos especialistas ... é ... a presença cotidiana ... emtodas as esferas da nossa existência ... essa capacidade é a competênciasuprema, a forma máxima de poder: o de criar realidade. Esse poder é ainda maior (igualando-se ao divino) quando, graças a instrumentos técnico-cientificos, essa realidade é virtual ou a virtualidade é real..."Qual a relação entre esse trecho de "Simulacro e Poder" e o que se passahoje ?
Antes de me referir à questão do virtual, gostaria de enfatizar afigura do especialista competente, isto é, daquele é supostamente portadorde um saber que os demais não possuem e que lhe dá o direito e o poder demandar, comandar, impor suas idéias e valores e dirigir as consciências eações dos demais. Como vivemos na chamada "sociedade do conhecimento", istoé, uma sociedade na qual a ciência e a técnica se tornaram forças produtivasdo capital e na qual a posse de conhecimentos ou de informações determina aquantidade e extensão de poder, o especialista tem um poder de intimidaçãosocial porque aparece como aquele que possui o conhecimento verdadeiro,enquanto os demais são ignorantes e incompetentes. Do ponto de vista dademocracia, essa situação exige o trabalho incessante dos movimentos sociaise populares para afirmar sua competência social e política, reivindicar edefender direitos que assegurem sua validade como cidadãos e como sereshumanos, que não podem ser invalidados pela ideologia da competênciatecno-científica. E é essa suposta competência que aparece com toda força naprodução do virtual.
Em "Simulacro e poder" em me refiro ao virtual produzido pelos novos meios tecnológicos de informação e comunicação, que substituem o espaço e o tempo reais - isto é, da percepção, da vivência individual e coletiva, dageografia e da história - por um espaço e um tempo reduzidos a um únicadimensão; o espaço virtual só possui a dimensão do "aqui" (não há o distantee o próximo, o invisível, a diferença) e o tempo virtual só possui adimensão do "agora" (não há o antes e o depois, o passado e o futuro, oescoamento e o fluxo temporais). Ora, as experiências de espaço e tempo sãodeterminantes de noções como identidade e alteridade, subjetividade eobjetividade, causalidade, necessidade, liberdade, finalidade, acaso,contingência, desejo, virtude, vício, etc. Isso significa que as categoriasde que dispomos para pensar o mundo deixam de ser operantes quando passamospara o plano do virtual e este substitui a realidade por algo outro, ou uma"realidade" outra, produzida exclusivamente por meios tecnológicos. Como se trata da produção de uma "realidade", trata-se de um ato de criação, queoutrora as religiões atribuíam ao divino e a filosofia atribuía à natureza.
Os meios de informação e comunicação julgam ter tomado o lugar dos deuses eda natureza e por isso são onipotentes - ou melhor, acreditam-seonipotentes. Penso que a mídia absorve esse aspecto metafísico das novastecnologias, o transforma em ideologia e se coloca a si mesma como podercriador de realidade: o mundo é o que está na tela da televisão, docomputador ou do celular. A "crise aérea" a partir da encenaçãoespetacularizada da tragédia do acidente do avião da TAM é um caso exemplarde criação de "realidade".
Mas essa onipotência da mídia tem sido contestada socialmente, politicamentee artisticamente: o que se passa hoje no Iraque, a revolta dos jovensfranceses de origem africana e oriental, o fracasso do golpe contra Chavez,na Venezuela, a "crise do mensalão" e a "crise aérea", no Brasil, um livrocomo "O apanhador de pipas" ou um filme como "Filhos da Esperança" são bonsexemplos da contestação dessa onipotência midiática fundada na tecnologia dovirtual.
Pedi à professora Marilena Chauí para responder a essas três perguntaspara usar no curso sobre "Telejornalismo" que dou, no momento, na Casa do Saber, em São Paulo. (http://www.casadosaber.com.br/)
Esse texto entra no ar, aqui no iG, no Conversa Afiada, ao mesmo tempo em que os alunos do curso recebem uma cópia. Os livros citados são: "Leituras da Crise"- "Diálogos sobre o PT, aDemocracia Brasileira e o Socialismo", Editora Fundação Perseu Abramo, SãoPaulo, 2006, com entrevistas também de Leonardo Boff, João Pedro Stedile eWanderley Guilherme dos Santos; e "Simulacro e Poder" - Uma Análise da Mídia" - Marilena Chauí, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2006.(PHA)
FONTE:
*Pessoal, perdoem os erros do texto. É culpa do blogspot, que não passa muito bem hj, e resolveu "comer" os espaços entre as palavras

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